
Olhava pra janela, putíssima da vida com a businação e aqueles carros passando bem no nariz. Pensava que já estava enlouquecendo com a barulheira, a fumaça... Precisava se mudar dali urgentemente! Perguntava-se como fora parar ali e então se lembrava: era um tempo em que estava sem grana nenhuma; tinha pedido demissão do cartório pra trabalhar no que amava, criação publicitária, freelas... Mas as coisas ficaram feias e o que recebia não dava pro aluguel; uma tia arranjou uma salvadora viagem pra Europa, da qual não voltaria tão cedo, talvez nunca mais; seu apartamento ficaria vazio. Maravilha!!! A sobrinha cuidava dele, podia viver lá pagando apenas o condomínio.
Mas a vida não é perfeita. O apê era na Amaral Gurgel e bem no primeiro andar: janelona pro Minhocão!!! Que desgraça!!!! Só quem mora no centro sabe o que é o Minhocão... E só quem o tem na janela sabe o que é tê-lo na janela. É como se a pior coisa que existe em Sampa estivesse bem na sala: o trânsito infernal.
Depois de um tempinho vivendo ali, ela reparou que toda a vizinhança compartilhava de seu ódio pelo notório elevado. Ele havia acabado com a vida noturna da região, era mal abrigo pra tudo quanto é desabrigado, desvalorizava terrivelmente os imóveis próximos, e o pior, o pior de tudo: era feio, terrivelmente feio!!! Como se não bastasse, levava o nome de um dos piores generais que esse país já havia visto – o desgraçado do Costa e Silva, que o tivesse o Diabo em treva eterna, pensava de passagem! Obra do escroto do Malufão, claro.
Aquele era um dia especialmente irritante: a chuva provocou um congestionamento e o Minhocão estava travadíssimo. Ela, que trabalhava em casa e tinha prazo vencendo, não conseguia fazer nada! Por que aquela gente tinha de meter a mão na buzina? Mas que merda! Resolveu sair. Saiu. Plantou-se na calçada, pro lado de fora do prédio e reparou que muitos vizinhos também estavam ali. A julgar pelos olhares direcionados às pilastras de sustentação do Minhocão, deviam estar indignados com aquela situação. Vez em quando, alguém comentava que o governo jamais tiraria o elevado dali, que a obra seria muito cara, que aquilo nunca deveria ter sido feito... Um silêncio de repente! As pessoas se entreolharam... De repente... Ela entendeu, todo mundo parecia ter entendido. Todo mundo sabia o que fazer. Todo mundo voltou pra casa.
Então a noite veio. Ela deu uma chegadinha na janela, pra ver se sua intuição estava certa e estava: tinha um ajuntamento de gente ali embaixo. Ela desceu e foi logo recepcionada por um cara: olha, prende esse aqui lá naquela pilastra... E ela foi. Ficou preocupada, mas não chegou a hesitar. Num instante terminaram e se afastaram... Dois ou três quarteirões, porque todos queriam ver o espetáculo... E viram!
Quando a polícia chegou, as bombas haviam acabado de explodir e aquele trecho do Minhocão caiu, comprometendo toda sua extensão, que também não tardou a se abalar.
A mídia falou em crime, mas crime pressupõe culpado e testemunhas... Acontece que ninguém, absolutamente ninguém havia visto coisa alguma.
Mas a vida não é perfeita. O apê era na Amaral Gurgel e bem no primeiro andar: janelona pro Minhocão!!! Que desgraça!!!! Só quem mora no centro sabe o que é o Minhocão... E só quem o tem na janela sabe o que é tê-lo na janela. É como se a pior coisa que existe em Sampa estivesse bem na sala: o trânsito infernal.
Depois de um tempinho vivendo ali, ela reparou que toda a vizinhança compartilhava de seu ódio pelo notório elevado. Ele havia acabado com a vida noturna da região, era mal abrigo pra tudo quanto é desabrigado, desvalorizava terrivelmente os imóveis próximos, e o pior, o pior de tudo: era feio, terrivelmente feio!!! Como se não bastasse, levava o nome de um dos piores generais que esse país já havia visto – o desgraçado do Costa e Silva, que o tivesse o Diabo em treva eterna, pensava de passagem! Obra do escroto do Malufão, claro.
Aquele era um dia especialmente irritante: a chuva provocou um congestionamento e o Minhocão estava travadíssimo. Ela, que trabalhava em casa e tinha prazo vencendo, não conseguia fazer nada! Por que aquela gente tinha de meter a mão na buzina? Mas que merda! Resolveu sair. Saiu. Plantou-se na calçada, pro lado de fora do prédio e reparou que muitos vizinhos também estavam ali. A julgar pelos olhares direcionados às pilastras de sustentação do Minhocão, deviam estar indignados com aquela situação. Vez em quando, alguém comentava que o governo jamais tiraria o elevado dali, que a obra seria muito cara, que aquilo nunca deveria ter sido feito... Um silêncio de repente! As pessoas se entreolharam... De repente... Ela entendeu, todo mundo parecia ter entendido. Todo mundo sabia o que fazer. Todo mundo voltou pra casa.
Então a noite veio. Ela deu uma chegadinha na janela, pra ver se sua intuição estava certa e estava: tinha um ajuntamento de gente ali embaixo. Ela desceu e foi logo recepcionada por um cara: olha, prende esse aqui lá naquela pilastra... E ela foi. Ficou preocupada, mas não chegou a hesitar. Num instante terminaram e se afastaram... Dois ou três quarteirões, porque todos queriam ver o espetáculo... E viram!
Quando a polícia chegou, as bombas haviam acabado de explodir e aquele trecho do Minhocão caiu, comprometendo toda sua extensão, que também não tardou a se abalar.
A mídia falou em crime, mas crime pressupõe culpado e testemunhas... Acontece que ninguém, absolutamente ninguém havia visto coisa alguma.
Porque esse conto não vira realidade, tem poucas obras que odeio mais que esta.
ResponderExcluirih... deu a idéia... conheço muita gente que aderiria se alguém liderasse!
ResponderExcluire todo o mundo que eu conheço ia aplaudir! kkk
Bob e Lu: nossa, tem coisa mais cretina que a bosta do minhocão???
ResponderExcluirahahah
ResponderExcluirgenial teu texto, Lia.
Curto muito o "crescendo" nos teus textos.
É uma coisa que sempre quis ter nos meus textos, mas ainda não fiquei bom nisso. É a mesma coisa (uma das) que admiro nos textos do Veríssimo (o filho). A coisa vai desenrolando, aumentando a expectativa, aumentando suavemente a tensão.
Como boas piadas. Boas piadas são aquelas que já me deixam rindo só na tensão criada da expectativa da resolução, o final engraçado, o "punchline".
E bjos,
L.
L.: Ah, muito obrigada! Acho que esse "crescendo" de que vc falou é muito importante em narrativas de fôlego curto. É a única forma de segurar o leitor, acho. Não sou boa com narrativas longas, na verdade, muito por causa disso: só manipulo bem o intenso, não muito o extenso. O J. Cortazar tem uns textos de crítica muito bons a esse respeito.
ResponderExcluirAdorei a passada!
Não faço idéia do que seja o minhocão, então certamente a coisa perdeu um pouco do sentido por aqui...
ResponderExcluirmas o sentimento de uma massa anônima já inclusive se torna realdidade...
esses dias vi dos foruns anonimous lá nos estados unidos, com atentados terroristas e tudo mais...
Thanatos: só pra te explicar: "O Elevado Presidente Costa e Silva (também conhecido simplesmente como Elevado ou Minhocão) é uma via expressa elevada da cidade de São Paulo, Brasil, que liga a região da Praça Roosevelt, no centro da cidade ao Largo Padre Péricles, no bairro de Perdizes (zona Oeste).
ResponderExcluirFoi construído com o intuito de desafogar o trânsito da Avenida General Olímpio da Silveira e da Rua Amaral Gurgel, as quais, por cortar regiões centrais da cidade, não poderiam ser alargada para ampliar sua capacidade. Assim, a solução seria a construção de uma via paralela sobre os logradouros para que a capacidade de tráfego fosse duplicada."(Wikipédia) O problema é que esse elevado fica exatamente na altura do primeiro andar dos prédios que têm por ali. Como ele é muito feio e serve de abrigo pra muitos mendigos, o entorno se tornou triste e tb perigoso. Ninguém em SP gosta do Minhocão, mas ele é especialmente odiado pelo moradores e amantes do centro. Todo mundo concorda que essa pista deveria ser subterrânea, mas uma vez construído, é difícil tirá-lo dali, ficaria muito caro.