segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Vertigem

Vertigem

A cabeça está um pouco atrapalhada com as imagens, mas mesmo assim, se esforça bastante para não perder o foco. Senão, cai tudo, o corpo inteiro. E cair assim, em pleno Viaduto do Chá, nossa! Melhor não. Uma vez, faz tempo já, se distraiu e caiu. Estava pertinho do Teatro, quase que fica sem a bolsa. Mas se fosse só a coisa da bolsa, tudo bem. Acontece que cair sempre tem mais decorrências. O levantear-se é a mais grave: precisa tomar cuidado pra não aparecer muito, entre puxar a saia pra baixo, voltar a se equilibrar no salto, cuidar da droga da bolsa, evitar o palavrão (que sempre se torna irresistível nessas horas)... Enfim, pra não parecer muito que caiu. É, isso de se levantar de volta é uma arte mesmo. Porque, nossa, quando todo mundo percebe que alguém caiu, é aquela coisa toda da chacota, do olharzinho indiscreto, do rizinho pelo vão dos dentes. Sempre achou completamente irritante esse costume que as pessoas têm de rir quando os outros caem. O que tem, meu deus? Caiu, levantou, já era! Mas não! Fica logo todo mundo especulando o motivo... Tava bêbado, o cara? Ou tava perdido no tempo e no espaço? Ou trombou em alguma coisa porque tava olhando pra moça? Curiosidadezinha besta! O sinal abre e os ônibus passam muito rápido. Todas as imagens se deslocam de uma vez... Todas! Acha até que o foco foi com os ônibus... Nossa... como demora pra tudo voltar pro lugar. Tá demorando cada vez mais. Mais parece que os ônibus lhe passaram por dentro da cabeça. Nessas horas, melhor mesmo é fechar os olhos e esperar passar. Tem vezes que a única coisa lúcida a fazer é esperar passar. Chegou a essa conclusão, se bem se lembra, durante o processo de morte do Dado. Processo arrastado, numa época em que tudo tava acontecendo tão rápido. Tudo, menos a morte dele. Foi o desmembramento da empresa, foi a tensão com a prefeitura, por causa dos anúncios, foi a mãe que resolveu aparecer mais que o doente, foi o encanamento do apartamento que estourou... do apartamento inteirinho! E o síndico ainda teve a cara-de-pau de vir “cobrar o prejuízo”! Cobrar! Cobrar o que, filho da... Precisa tomar cuidado pra evitar o palavrão (que sempre se torna irresistível nessas horas)... Mas então... Nossa, precisava de cada vez mais atenção pra não esquecer o que estava pensando. O que era mesmo? A coisa do palavrão... Ah, sim! As coisas todas que aconteceram enquanto o Dado se ocupava de ir morrendo. Nossa, que jeito horrível de pensar... Mas no fundo foi isso mesmo! Se ocupou de ir morrendo o egoísta. Ficou pensado em todo mundo que tinha que ver antes de morrer. E ela? Ela ganhou o cargo de secretária de doente. E o mundo lhe caindo na cabeça, e ela tendo que secretariar o quase-morto. Isso sem pensar na lista de exigências e extravagâncias que ele tinha de encomendar toda a semana... Essas coisas que a gente, que nasce cristão, só faz para a pessoa porque ela vai morrer logo mais. Tudo um saco, tudo caro, tudo tomando um tempo de que ela, na maior parte das vezes, não dispunha. E o processo de morte se ia arrastando por meses e meses! Mas aqui já é a Consolação, caramba! E nem se lembrava de haver passado pela Barão... Tinha que xerocar o RG e na Barão seria mais barato... Ah! Coisa de centavos! Bobagem! Precisava comer alguma coisa... Mas não tinha passado pela Barão, pegou a 7 de abril... Abril ou setembro? Nunca lembra. Esquece as coisas que vê porque fica pensando em outras enquanto vê. É por isso, lógico... Mas esses malditos carros, tão buzinando por qual motivo? Sempre buzinam, mas nunca adianta. Se alguém atrasa o trânsito, sabe que tá fazendo isso, não precisa de ser avisado! Esses carros, mais parece que eles lhe passam por dentro da cabeça. Quase caiu! Podiam ter atropelado o Dado, que também tava na cabeça na hora em que passaram. Nossa, tudo demora tanto pra voltar ao foco! Mas a verdade, no fim de tudo, foi que esperar era a melhor solução. Fazer o que mais? Ele ía morrer mesmo... Todo mundo vai um dia. Até o invencível Dado morreu! Aquele intocável... Melhor parar de pensar nisso. O morto tá morto. Não morreu tarde, claro. Mas tá morto. Nossa, nem sabe dizer a quanto tempo que entendeu que o melhor era ele ter morrido logo de cara. Que coisa feia querer isso! Mas não foi sempre assim, ficou assim de repente. E ficou assim mais porque, durante os longos preparativos pra morte, não deu pra resolver quase nada. Queria por a culpa no mundo. Ai, o mundo, essa entidade abstrata! É sempre a salvação retórica, né? O mundo anda violento! O mundo tá tão louco! O mundo tem pressa, tem isso e tem aquilo! Mas não, não era o mundo nada. Não tem astros conspirando contra. E não é o chão que gira e dá vertigem. É a cabeça, a própria cabeça. Sempre é a cabeça, acontece tudo ali. É na cabeça que as imagens se formam, é na cabeça que elas mudam. Por isso que é importante evitar cair. Depois da queda, todo mundo muda a imagem que tem de quem caiu e o pior é que quem caiu sabe disso. É na cabeça de quem caiu que acontece a mudança. Em inglês tem uma boa expressão para isso, o fall apart. Cair é mesmo uma... Nossa, precisa realmente cuidar de evitar o palavrão (que sempre se torna irresistível nessas horas). Mas ela não caiu, não! Melhor nem pensar no que ia ser se perdesse a cabeça, com aquele bando de urubu voando por cima, querendo tudo, empresa, o que sobrou do apartamento, tudo. E agindo com aquela dignidade de família de verdade, primeiro casamento e coisa e tal! Nossa! Como assim!? Não falavam com o Dado há uns dois anos, dois anos e meio e... As imagens de novo, nossa. A cabeça vai ficando cada vez mais atordoada. Já nem sabe mais por que não está em casa... Ah, a conta! A conta da lojinha pequena., era isso o que foi fazer no centro. Tem que lembrar das motivações. São elas que mantêm todo mundo em pé. Sem isso qualquer um cai. Tem que lembrar do porque se sai de casa todos os dias, do porque se trabalha com o que se está trabalhando, do porque se deve voltar pra casa... Tem que lembrar do motivo de tudo. Na verdade, os motivos primeiros são as únicas coisas que ainda não se perderam no labirinto da mente. Tem que lembrar, lembrar de tudo. Tem que se esforçar para não perder o foco. Mas com essa tontura, lembrar de tanta coisa é mesmo torturante. Pensando bem, o que não é nesse mundo de... Olha o mundo de novo! Olha o mundo e o palavrão (que sempre se torna irresistível nessas horas). E as imagens não param quietas! Precisa... nossa, precisa... Precisa dar uma deitada! Não, o foco! A lojinha... O táxi! Mais parece que ele vai lhe passar por dentro da cabeça. Melhor pegar! Nem está se equilibrando nos saltos! Desse jeito, vai cair. Daí, vai ser aquela coisa toda! E cair assim, em plena consolação, nossa! Melhor não! E vai o foco já se perdendo no labirinto do... do que? Tinha uma metáfora bonita pra isso... Mas que metáfora o que! Táxi, táxi! Era a coisa do foco que estava pensando, uma coisa que tinha que lembrar... Táxi! Não, não tinha nada a ver com táxi, nem com ir embora. Era... Nossa... Se bobear, caiu e não estava se lembrando (precisava comer alguma coisa). Mas era alguma coisa de cair, com certeza.

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