domingo, 7 de janeiro de 2007

Linda e distraída

Linda e distraída

Da janela da sala central dava pra ver quando ela chegava e ela vinha sempre linda e distraída. Essa janela ficava do lado de sua mesa, o que era bom nos dias de sol e muito ruim nos de chuva, mas muito ruim mesmo! Ficava tudo úmido e frio e não dava pra estar confortável no frio e na umidade. Aliás, vinha chovendo cada vez mais e a eternidade se configurava num céu amplo, molhado e cinza-chumbo. Logo cinza-chumbo, que é cor do trabalho; deveria se chamar cinza-ferro, teria mais poesia. Mas não tem, não tem mais poesia porque é o chumbo, é só trabalho. Já tinha ouvido muita coisa bonita e edificante sobre o trabalho, mas nenhuma que o convencesse de que trabalhar era melhor que ficar ocioso. Achava mesmo que não era possível que o ser humano houvesse tido a graça de existir com a finalidade de trabalhar, porque se fosse assim, teria os pés mais largos, pra agüentar mais tempo de pé, teria mais um par de braços, teria uma mente que não stressasse nunca, afinal, seria sua natureza trabalhar e o corpo não exige nada que seja anti-natural. Nunca. Ia ser trabalhar e trabalhar. Mas nada! O corpo cansa e se vai destruindo com o passar do tempo: dá varizes, dá enfarte, dá gastrite, dá neurose, dá de tudo. Semana passada mesmo o diretor de finanças tinha tomado um aperto indireto da receita federal e o susto acabou sendo tamanho que ele precisou sair pra tomar um ar. Não voltou mais nem pra sala e nem pra vida, isso depois de ter ficado duas noites sem dormir, cuidando do trabalho. Foi tenso pra todo mundo na firma. Menos pra ela, claro, sempre linda e distraída, rindo pra todo mundo que passava. Nunca pôde entender o que havia de tão engraçado no mundo pra ela ter o riso tão fácil. Talvez o cinza-chumbo fosse a cor preferida dela e agora que a eternidade se configurava num céu amplo, molhado e cinza-chumbo, agora que o pra-sempre era assim, ela devia estar muito contente. Tanta alienação chegava a ser revoltante! Porque do jeito que as coisas vinham andando, era um grande desaforo pra qualquer cara lúcido uma felicidade tão a troco de nada. Só o fato de se estar em pé, uma hora inteira, dentro de um ônibus sacolejante, e as pessoas não se dignarem a pedir licença antes de espremer todo mundo contra as barras já deveria ser motivo bom o bastante pra acabar com a risadinha de qualquer um. Tomar ônibus, aliás, se ia tornando uma questão existencial seríssima! Era tanto individualismo, mas tanto individualismo, que ser tocado, ser relado por alguém que não se conhece dava um mal estar que variava do leve desconforto à perda total da paciência; o ônibus lotado então devia ser a situação-limite do homem metropolitano. Era obvio isso, mas mais obvio ainda era que o homem metropolitano nem percebia o nível do destempero que todas essas questões modernas provocavam. Obvio sim, porque se soubesse, não seria metropolitano. Mas que despropósito!, a despeito do que pudesse parecer, era tanta ingenuidade que havia por aí, pelo mundo! Não que significasse que ingenuidade era inocência, não era isso o que achava de fato. Mas havia sim, no tempo do homem desencantado, pós-existencialista e coisa e tal, havia sim muita ingenuidade mesmo. Havia por exemplo gente que andava por aí como ela, linda e distraída, olhando sem ver nada do que o cinza do dia trazia em sua pauta. Nunca soube se o bom era saber dessas coisas todas que sabia, ver a sujeira escondida em cada fresta, ou não saber de nada e achar que na paisagem tudo era muito limpo. Mas sobre ela especificamente vinha especulando que nem assim não era. Achava na verdade que ela nem sabia que havia uma paisagem ou ainda pior, que sabia mas que nem se incomodava em parar de cantarolar pra olhar com cuidado. Podia ser que estivesse certa afinal, que não houvesse nada em que valesse a pena deter o olhar. Podia ser que isso de dissecar o tempo em que se vive fosse uma grande bobagem, que a vida fosse muito curta e melhor seria se ver a si mesmo apenas. Podia ser até que o mundo estivesse certo e ele errado. E pior ainda que tudo isso: podia ser que não existisse o mundo mas só bilhões e bilhões de indivíduos que em suas almas individuais tivessem como certo que o bom jeito de andar é sempre lindo e distraído. Mas chegou à conclusão de que era melhor não ir aceitando essa idéia, que podia ser perigosa. A essas horas ela já estava atravessando a porta, linda e distraída como sempre, enquanto a eternidade se configurava num céu amplo, molhado e cinza-chumbo. E ele depois de tamanha salada de conceitos acabou entendendo que pra sua segurança era melhor aceitar o convite pra um café que ela lhe fazia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Vem com tudo!