Cara, uma coisa eu posso dizer pra você com certeza: a gente só sabe qual opinião tem a respeito da morte quando se liga que vai morrer mesmo, que não tem mais jeito. Porque é aquela coisa, né?, todo-mundo sabe que vai morrer um-dia, mas quando o todo-mundo tem nome e quando um-dia tem data certa, aquilo que a gente tem de dizer que não tem medo ou que entra em pânico só de pensar, aquilo não tem mais serventia nenhuma. O todo-mundo da vez é o Marcos: o cara vai morrer, coitado, vai morrer logo-logo. Quer dizer, logo-logo numas! Ele tem aí uns... cinco, cinco ou seis anos a mais de vida, contando a partir de hoje, que foi o dia em que ele levou os resultados de uns exames de rotina pra o terceiro médico diferente. Até que foi teimoso, né? É que ele não costuma, não costuma ser muito insistente não, nem quando é caso-de-vida-ou-morte – esse é caso só de morte. Esse mês foi todo assim, maior correria atrás de exames, faz e refaz e faz de-novo, só pra ter garantia completa de que a cova já está ao dispor. Ele fez o primeiro exame e o resultado saiu super-rápido porque a menininha do atendimento arrastou um bonde pelo Marcos sem ele ter feito nada (o negão é foda, diz aí!). Daí, foi ao médico verificar e o médico disse que ele iria morrer. É obvio (e se não é obvio é porque você não tem amor à vida!) que o segundo Daí foi um novo exame num outro laboratório levado pro mesmo médico. Sem chance, vai morrer. E o Daí final foi o terceiro exame num terceiro laboratório pra um segundo médico. Vix, era melhor parar com aquilo!, tava na merda mesmo, não tinha jeito não! Deprê, né?
Mas sabe o que é pior? É você saber que a morte tá lambendo o seu pescoço mas sentir forte feito um tigre, pra-caralhamente bem, com ânimo pra trabalho de construir um país inteiro e pra povoar o mundo umas duas vezes de tanto fazer filho. Não dá pra entender, né?! Como é que pode?!
O Marcos tá pensando agora que isso deve ser praga, praga daquele branquelo! Ai!, pensar nisso dá vontade de mostrar os dentes, uma risada de si mesmo, dá sim. Que coisa louca, rapaz! Você veja bem como as coisas são: o nosso amigo Marcão sempre foi um cara saudável, ele come legal, ele dorme legal, ele se exercita com capoeira há vários anos, ele não fuma... Só um baseadinho de-vez-em-quando, mas é tão de-vez-em-quando que nem dá pra chamar de usuário. Agora o Sea não! O Sea encheu a cara de todo tipo de droga a que conseguiu acesso, não come nada que não seja vegetação encruada e isso quando come, balada é coisa que ele fez e faz e fará, sai por aí dando mais-que-xuxu-na-serra e tá lá, com a saúde inabalável, nem gripe o filho-da-puta não pega, nem uma corizinha de nada, nem cheirando pó ele não tem coriza! Que ódio! Pensando nisso o Marcos quase lamentou por não ter enfiado-o-pé-na-jaca tanto quanto pôde. Mas tudo-bem, não se pode querer tudo de uma vez. O Marcos optou por trabalhar regularmente com o que gosta e ter filho. Tinha que ter saúde e imagem que servisse pra ser de pai então, né? E foi bom, foi bom sim. O moleque já tá grande, criado, tá um homão!, tá fazendo intercâmbio, tá pegando a mulherada, é! O cara tem futuro, tem sim. O lamentável é o tipo de som que ele escuta, um lixo pop que a turminha infanto-juvenil insiste em chamar de black-music mas que não merece nem o título de music, quanto mais de black-music! Pois-é, cara, é o que eu dizia agora mesmo: não se pode querer tudo de uma vez.
Mas pensando em querer-tudo-de-uma-vez, o Marcos se lembrou que estava fazendo exatamente isso agora, querendo que o café chegue logo mas não querendo chamar o garçom, divagando por aí e aplicando ao seu dia o que a Olívia chama de “Estratégia Buenairense de Gasto de Horas Faltantes” (ela diz Sbressalentes em vez de faltantes, mas quem é que tem horas sobressalentes hoje em dia?), ou seja, está sentado num café pensando na vida há algum tempo, sem fazer nada (no caso, sem nem pedir o café). Ah!, um moribundo tem esse direito, né?! Pel’amor-de-deus! Mas não, não precisa faltar com o bom senso, ele vai chamar o garçom. Podia ser um irish-café, nesse frio cai bem!
O complicado agora é isso: comunicar toda gente, família, amigos, colegas, toda a galera, falar pra eles sobre a nova condição da sua vida: o fim abreviado. Como será que vai fazer? Será que uma festa, pra já contar pra todo mundo de uma vez só? Não seria mal, mas pensando bem, quando ele anunciasse era capaz de as pessoas o acharem muito filho-da-puta por cometer o irônico ato de festejar numa-boa e quebrar o clima assim, do nada... Não, muito má idéia essa da festa. Pode não contar também, que diferença faz? Se ele fosse morrer atropelado amanhã ninguém teria sido previamente avisado também! É, essa era uma solução mais interessante. Mas tem umas pessoas que não tem como não comunicar. Duas, pra ser preciso: o Marcelinho (o moleque do Marcos se chama Marcelinho) e o Sea; o Marcelinho, porque é um cara de muito tato, vai ficar mal por perder o pai mas não vai causar, vai segurar firme a barra e não vai abrir o bico pra quem não deve e o Sea, porque se o Marcos morre de-repente, é capaz de o Sea desatinar e morrer também, pra se arrepender cinco minutos depois e não ter mais vida pra recuperar... Ou simplesmente porque o Sea é o único cara capaz de levar alegria pra alguém que vai... MORRER! Cacete! O marcos pensou tanto nessa palavra nos últimos dias que já está se acostumando com ela: “morrer, eu vou morrer... vou morrer... morreeeeeeeeer...” Repete a frase muitas e muitas vezes... Ela vai se desgastando, desgastando, esvaziando... Até que perde o sentido entre uma pronúncia e outra. Essa coisa da morte já nem parecia tão grave assim, nem parecia mesmo! O estranho é que ele nem consegue se sentir triste. Ele acha que talvez não tenha entendido bem o que aconteceu ou que não dá valor pra vida ou... sei-lá... Ele nem se sente mal de se pensar assim e isso é estranho pra ele.
O sol começa a incidir bem em cima da mesa em que ele tá sentado: o sol ao pôr-do-sol é mesmo a coisa mais linda. Em São Paulo é especialmente bonito porque a demasiada poluição traz tons róseos e violáceos que não se encontra em qualquer lugar. É divino! É divino! É feito pra ser bonito! O Marcos olha o facho de luz meio que caçando uma resposta: o que fazer agora? Fazer que nem o velho Mané, pensar na vida e nas mulheres eu amou até o fim? Não parece má-idéia. Mas o Marcão não é muito dado á contemplação. Deixar uma bela obra pra posteridade? Pode ser bom, dá pra realizar muita coisa em cinco anos... Cinco anos é tempo pra-caramba se for pensar bem: ele já tá formado, já tá com filho grande, já tem grana tanto quanto precisa, tem o próprio negócio e não tá casado: nada depende dele pra permanecer na existência. Isso significa que a vida tem pouco sentido? Pode ser, de agora pra frente, seria tocar a vida ad eternum, bem a toque de lesma! Mas agora que sabe que vai morrer, pode formular novos projetos, alguma coisa pessoal que esteja inacabada, alguma experiência não-realizada... Pode até mudar o mundo, em cinco anos se consegue, né?! Ah!, que-legal! Bom, ele tá decidindo: vai atrás de todo mundo com quem deixou alguma coisa pendente, seja pra resolver, seja pra foder-com-tudo. Mas não agora, agora o Parque Trianon pede uma visita: é um lindo lugar em dias de frio!
Tem gente que, quando descobre que vai morrer, se desespera e acaba com a vida, se internando em hospital e cortando os desregramentos e fazendo testamentos. Isso acaba com os últimos bons tempos de que se poder gozar pra sempre: esse sujeito morre em vida! Agora, depois do bom café e da água com gás, o Marcos tá começando a acreditar que a notícia da morte pode ser bem o que faltava pra dar cor à sua vida.
Certo... Por onde começar então? Pela consulta à agenda de telefones. Mas deixa o Marcos terminar de pagar a conta que depois ele vai pro parque. Chegando lá a gente vê essa agenda...
Mas sabe o que é pior? É você saber que a morte tá lambendo o seu pescoço mas sentir forte feito um tigre, pra-caralhamente bem, com ânimo pra trabalho de construir um país inteiro e pra povoar o mundo umas duas vezes de tanto fazer filho. Não dá pra entender, né?! Como é que pode?!
O Marcos tá pensando agora que isso deve ser praga, praga daquele branquelo! Ai!, pensar nisso dá vontade de mostrar os dentes, uma risada de si mesmo, dá sim. Que coisa louca, rapaz! Você veja bem como as coisas são: o nosso amigo Marcão sempre foi um cara saudável, ele come legal, ele dorme legal, ele se exercita com capoeira há vários anos, ele não fuma... Só um baseadinho de-vez-em-quando, mas é tão de-vez-em-quando que nem dá pra chamar de usuário. Agora o Sea não! O Sea encheu a cara de todo tipo de droga a que conseguiu acesso, não come nada que não seja vegetação encruada e isso quando come, balada é coisa que ele fez e faz e fará, sai por aí dando mais-que-xuxu-na-serra e tá lá, com a saúde inabalável, nem gripe o filho-da-puta não pega, nem uma corizinha de nada, nem cheirando pó ele não tem coriza! Que ódio! Pensando nisso o Marcos quase lamentou por não ter enfiado-o-pé-na-jaca tanto quanto pôde. Mas tudo-bem, não se pode querer tudo de uma vez. O Marcos optou por trabalhar regularmente com o que gosta e ter filho. Tinha que ter saúde e imagem que servisse pra ser de pai então, né? E foi bom, foi bom sim. O moleque já tá grande, criado, tá um homão!, tá fazendo intercâmbio, tá pegando a mulherada, é! O cara tem futuro, tem sim. O lamentável é o tipo de som que ele escuta, um lixo pop que a turminha infanto-juvenil insiste em chamar de black-music mas que não merece nem o título de music, quanto mais de black-music! Pois-é, cara, é o que eu dizia agora mesmo: não se pode querer tudo de uma vez.
Mas pensando em querer-tudo-de-uma-vez, o Marcos se lembrou que estava fazendo exatamente isso agora, querendo que o café chegue logo mas não querendo chamar o garçom, divagando por aí e aplicando ao seu dia o que a Olívia chama de “Estratégia Buenairense de Gasto de Horas Faltantes” (ela diz Sbressalentes em vez de faltantes, mas quem é que tem horas sobressalentes hoje em dia?), ou seja, está sentado num café pensando na vida há algum tempo, sem fazer nada (no caso, sem nem pedir o café). Ah!, um moribundo tem esse direito, né?! Pel’amor-de-deus! Mas não, não precisa faltar com o bom senso, ele vai chamar o garçom. Podia ser um irish-café, nesse frio cai bem!
O complicado agora é isso: comunicar toda gente, família, amigos, colegas, toda a galera, falar pra eles sobre a nova condição da sua vida: o fim abreviado. Como será que vai fazer? Será que uma festa, pra já contar pra todo mundo de uma vez só? Não seria mal, mas pensando bem, quando ele anunciasse era capaz de as pessoas o acharem muito filho-da-puta por cometer o irônico ato de festejar numa-boa e quebrar o clima assim, do nada... Não, muito má idéia essa da festa. Pode não contar também, que diferença faz? Se ele fosse morrer atropelado amanhã ninguém teria sido previamente avisado também! É, essa era uma solução mais interessante. Mas tem umas pessoas que não tem como não comunicar. Duas, pra ser preciso: o Marcelinho (o moleque do Marcos se chama Marcelinho) e o Sea; o Marcelinho, porque é um cara de muito tato, vai ficar mal por perder o pai mas não vai causar, vai segurar firme a barra e não vai abrir o bico pra quem não deve e o Sea, porque se o Marcos morre de-repente, é capaz de o Sea desatinar e morrer também, pra se arrepender cinco minutos depois e não ter mais vida pra recuperar... Ou simplesmente porque o Sea é o único cara capaz de levar alegria pra alguém que vai... MORRER! Cacete! O marcos pensou tanto nessa palavra nos últimos dias que já está se acostumando com ela: “morrer, eu vou morrer... vou morrer... morreeeeeeeeer...” Repete a frase muitas e muitas vezes... Ela vai se desgastando, desgastando, esvaziando... Até que perde o sentido entre uma pronúncia e outra. Essa coisa da morte já nem parecia tão grave assim, nem parecia mesmo! O estranho é que ele nem consegue se sentir triste. Ele acha que talvez não tenha entendido bem o que aconteceu ou que não dá valor pra vida ou... sei-lá... Ele nem se sente mal de se pensar assim e isso é estranho pra ele.
O sol começa a incidir bem em cima da mesa em que ele tá sentado: o sol ao pôr-do-sol é mesmo a coisa mais linda. Em São Paulo é especialmente bonito porque a demasiada poluição traz tons róseos e violáceos que não se encontra em qualquer lugar. É divino! É divino! É feito pra ser bonito! O Marcos olha o facho de luz meio que caçando uma resposta: o que fazer agora? Fazer que nem o velho Mané, pensar na vida e nas mulheres eu amou até o fim? Não parece má-idéia. Mas o Marcão não é muito dado á contemplação. Deixar uma bela obra pra posteridade? Pode ser bom, dá pra realizar muita coisa em cinco anos... Cinco anos é tempo pra-caramba se for pensar bem: ele já tá formado, já tá com filho grande, já tem grana tanto quanto precisa, tem o próprio negócio e não tá casado: nada depende dele pra permanecer na existência. Isso significa que a vida tem pouco sentido? Pode ser, de agora pra frente, seria tocar a vida ad eternum, bem a toque de lesma! Mas agora que sabe que vai morrer, pode formular novos projetos, alguma coisa pessoal que esteja inacabada, alguma experiência não-realizada... Pode até mudar o mundo, em cinco anos se consegue, né?! Ah!, que-legal! Bom, ele tá decidindo: vai atrás de todo mundo com quem deixou alguma coisa pendente, seja pra resolver, seja pra foder-com-tudo. Mas não agora, agora o Parque Trianon pede uma visita: é um lindo lugar em dias de frio!
Tem gente que, quando descobre que vai morrer, se desespera e acaba com a vida, se internando em hospital e cortando os desregramentos e fazendo testamentos. Isso acaba com os últimos bons tempos de que se poder gozar pra sempre: esse sujeito morre em vida! Agora, depois do bom café e da água com gás, o Marcos tá começando a acreditar que a notícia da morte pode ser bem o que faltava pra dar cor à sua vida.
Certo... Por onde começar então? Pela consulta à agenda de telefones. Mas deixa o Marcos terminar de pagar a conta que depois ele vai pro parque. Chegando lá a gente vê essa agenda...
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