quarta-feira, 28 de maio de 2008

A Lê

Era uma bela Leandra; virou a Lê com o passar do tempo. Ela achou que -andra não caía muito bem pra uma mocinha como ela. Mas bela, sim, bela, nunca deixou de ser. Pelo contrário, com ela sempre foi assim: ia passando o tempo e seu corpo se arredondando, se conformando, se perfazendo... Nada de errado acontecia, nem mesmo uma espinhazinha, uma estria, celulite... Nada! Rosto bacana, corpo absurdo: maior gostosa, maior sorte dela.


Maior sorte dela... Pois é, Lê não pensava assim e teve problemas com isso desde cedo. A princípio porque o namorado da mãe se apaixonou por ela... A mãe pôs o puto pra fora de casa, claro!, mas o que havia entre as duas nunca voltou ao normal.
Ela saiu de casa, arranjou emprego. Foi cantada por todos os colegas até o dia em que resolveu reclamar pro chefe, que sugeriu que a culpa era dela: "Quem mandou nascer tão linda? Aliás, você é bem linda mesmo... Se por acaso você tiver um tempinho...", e Lê pediu demissão. Bobagem dela, né?, porque a mesma situação se repetiu continuamente em sua vida.


Outra coisa coisa chata era que ela só conseguia ter amizade com um cara depois do terceiro ou quarto fora consecutivo, de sorte que acabou sendo muito mais fácil ser amiga dos gays.
Mas o que era pior era andar sozinha por aí, pelas ruas, especialmente à noite. Quando ela tinha sorte, muita sorte mesmo, recebia elogios como "gostosa". Mas em geral, Lê ouvia coisas muito piores. Tinha gente que chegava ao cúmulo parar o carro pra perguntar quanto ela queria por uma noite. Era tanto coisa, tanta, tanta... A Lê tentava não prestar atenção, mas nunca conseguia abstrair.


Pensou em começar a se vestir com as roupas mais largas e abarangosas possível, mas achou injusto consigo mesma. Caralho!, ela tinha todo o direito de se sentir bonita, de se vestir como quisesse! E ela gostava de ser uma moça bonita sim! O que a irritava era que isso significava um apelo sexual quase degradante! E se ela ao menos vestisse roupas curtinhas ou provocantes... Mas não: qualquer calça-jeans-e-camiseta era o bastante.

A Lê não quis achar possível que o mundo fosse resumido a uma legião de tarados e de neuróticas (não quis, mas ficou achando). Porque, claro!, as garotas também não perdoavam seu gostosismo excessivo: ela chegava, todos os namorados torciam o pescoço pra vê-la e pronto!, era ela a vagabunda!


A Lê começou a se tornar uma pessoa um pouco sentida. Mas achou algumas soluções: foi trabalhar numa instituição de ressocialização de "deficientes visuais" (quase que só tinha cegos por lá). E aí sim, aí ela se apaixonou por um colega de trabalho. E aí sim, aí ela parou de encarar a beleza como um índice que quem nasceu sob uma má estrela...

4 comentários:

  1. muito booooommm!!!
    esse entrou pro meu hall pessoal aqui. muito muito bom.

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  2. Obrigada!
    Nossa, que bom que gostou tanto!
    Me inspirei naquelas suas postagens sobre feminismo/machismo e desenhei um vítima do machismo que não se vitimiza tanto! Mérito teu tb!

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  3. Ótimo texto! E nota especial pro 'abarangosas'. Demais essa palavra! hahahaha... gostei!

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  4. Eu curto uns neologismos!
    Dão um tom meio cômico, meio descomprometido...

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