quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

é como as coisas são


A tarde cai devagar. A cidade acontece lá fora. Ela está com o olhar parado na janela, enquanto o trem corre na margem do rio. Mais um dia que se vai. Não houve trânsito, não houve problemas no trabalho, não houve nada fora do previsto. É um bom dia que se vai. Ela agora pensa que, quando se é um adulto, é preciso que nada aconteça fora do normal para que um dia seja bom - quando criança, era uma glória ocorrer qualquer coisa que movimentasse a vida... Ela pensa em todo o trabalho que realizou durante o expediente: a gráfica devolveria o material produzido em dois dias; em uma semana o mesmo material estará entupindo alguma caixinha de reciclagem...
É como as coisas são... Ela acha agora tudo tem obsolescência programada, cada vez mais. Todas as coisas, incluindo relações pessoais. Tudo se deteriora cada vez mais rápido. É como as coisas são, ela pensa. Ela pensa e se sente pequena diante de uma natureza mutante e intocável. Lembra do amante que deixou sua casa durante a madrugada no final de semana. Ele não a ama há tempos, ela deixou de amá-lo por isso, ninguém toca nesse assunto. Lembra da prima com quem cresceu: mudou-se pra outro estado e se casou por lá. Ela não viu o casamento porque tinha de trabalhar. Lembra - e se conforta - de suas contas, todas elas em dia.
Ela pensa, nesse exato instante, que dali a pouco estará em casa, o copo de chardonay entre a mão e a boca, o corpo estirado numa espreguiçadeira barata, o som executando algum disco de choro ou de blues. Então ela sabe que vai sorrir, com algum prazer e certo fastio. Vai pensar que o dia foi bom - foi bom sim, certamente - e vai evitar, a todo custo, a palavra finalidade (porque toda neurose nasce dos conceitos), assim como também qualquer metáfora (porque toda grande paixão começa numa metáfora).

Ela ainda tem os olhos vidrados na janela - não pisca há quase dois minutos. A cidade acontece lá fora. A tarde cai devagar. O trem corre na margem do rio.

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