segunda-feira, 30 de novembro de 2009

a vida é boa - 1

... mas o problema maior estava um tanto distante das formulações que vinha fazendo até então. Meses depois é que ele compreendeu que tudo quanto acreditava sobre o que havia vivido não passava de ledo (muito ledo) engano da alma. Teria uma compreensão completa e bem tardia, dessas que põem a perder mais do que se tem. E nunca mais teria um risinho fácil novamente. Mas ele agora não tem nem idéia disso: por enquanto ainda não se passaram os meses, por enquanto ele ainda leva a alma leda. Leda sim, muito leda.

Ele agora está sentado na janela, tecendo elevadas reflexões entre anéis de fumaça e vapores alcoólicos. Está bêbado – antes de vaidade que de gin-tônica – e perde os olhos no horizonte gris e violáceo, em que edificações se estendem ao infinito. Pensa que pôde conquistar aquela imensa e feroz cidade com menos esforço do que imaginou um dia ser necessário. Aliás, como é de impressionar o quanto em São Paulo as pessoas podem ser medíocres! E é onde está o dinheiro, veja bem... Todinho ele em São Paulo, a terra das pessoas mais arrogantemente tontas que já conheceu. Mas acha agora que o dinheiro, na realidade, gosta mesmo de ser feito por mãos de idiotas e premia quem o faz com muita generosidade. Os melhores, os caras bons mesmo, estavam sempre cheios de trabalho e com nenhum dinheiro. Não, ele não!, ele vai ganhar dinheiro nem que seja à base de porrada! Já conseguiu o emprego que queria, faltava agora um salário digno de si – as pessoas não entendem isso: o salário deve ser digno de um homem e não o contrário. Mas que se foda, isso ainda vai mudar... Não a opinião, mas a situação. Vai fazer por onde conseguir um salário justo sim e vai comprar um apartamento, que com essa coisa de pagar aluguel ele não se acostumava. Talvez ela ajude com isso, está morando naquela casinha estúpida com aquela bicha chata; se ele comprar um apartamento, ela vai morar com ele e paga o condomínio, em vez de gastar com o aluguel daquele lugar. A proposta seria irrecusável... E seria bom morar com ela, daria pra trabalhar enquanto ela se ocupasse com os livros, sabe lá... Ela podia era largar mão de estudar teatro e arranjar alguma coisa que renda! Teimosa, teimosa pra caralho, vai se foder e não vai aprender. Essa coisa de pagar de descoladinha não tem nada a ver com viver de verdade... Essa mulherada paulistana tem um jeito de ser muito independente, mas a verdade é que toda mulher quer um cara que tome conta dela direitinho, que seja forte, que diga como as coisas são... Todas querem se casar, cedo ou tarde, e ela é mulher como qualquer outra.

É, uma coisa ou outra precisa se ajeitar, mas a vida é boa ao fim das contas, a vida é muito boa sim. Olhando bem, ele tem 29 anos, não é um homem sem trabalho, não é um homem sem mulher, está no auge da forma física... Pois é, está se dando bem em São Paulo sim senhor! Dá saudade de mar e sol e céu azul, de passar por aí e dar bom-dia a toda gente, de ter amigos – em São Paulo ninguém é amigo de ninguém! Mas já está ganhando a cidade, já está aprendendo a jogar e não é o tipo de cara que joga pra perder. A vida é boa sim... A vida... Mas caralho! Que porra é essa?

Essa "porra" é uma ventania úmida e fria vinda de repente, uma nuvem plúmbea se avultando no tal horizonte gris e violáceo – sinal de que a terra da garoa está de mau humor. Daqui a pouco vai chover. E vai ser uma tempestade quase bíblica. Daqui a pouco o céu vai vir abaixo. Sabe lá o que vai acontecer depois.

Mas deixa chover! Ele agora abre um risinho fácil: se a Marginal inundar, não tem problema, ele não vai mais sair de casa hoje...

Um comentário:

  1. Já tinha passado pelo histórico e digo sem sombra de dúvidas que é o melhor texto já postado nesse blog! Não só pelo fato de que qualquer paulistano ordinário se identifica com cada vírgula, mas porque tá absurdamente bem escrito.

    E isto foi sensacional:
    "Está bêbado – antes de vaidade que de gin-tônica"

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